O primeiro remédio para a cura da alma e para a busca da felicidade é:
"Não tema os deuses".
Antes de mais nada, devemos revisar o conceito de deuses de Epicuro. Epicuro viveu na Grécia Antiga, que era politeísta, e ele criticava as crenças religiosas de seu povo, que acreditavam que os deuses eram muito poderosos, estavam presentes em praticamente todos os fenômenos naturais, eram interessados em sacrifícios e orações e possuíam qualidades e defeitos humanos, como raiva, inveja, luxúria e cobiça. Epicuro se opunha a essas crenças, por duas razões: elas não seriam compatíveis com a realidade; elas teriam impactos negativos sobre a vida e a felicidade dos homens.
Sobre o primeiro ponto, qual a realidade relativa aos deuses? Antes de mais nada é preciso saber se eles existem. Se não existirem, não há necessidade de maiores debates. Só que Epicuro não falou contra a existência dos deuses, e seus ensinamentos consideram fortemente a possibilidade de que eles existem. E na verdade essa seria a postura mais prudente em relação ao assunto, visto que não há forma de se afirmar com segurança a não-existência de Deus, ou deuses. Para Epicuro, teríamos conhecimento dos deuses porque eles, de alguma forma, conseguem gerar uma impressão, uma prolepse, em nossa mente, em nossa alma. Essa impressão seria muito sutil para ser detectada diretamente pelos órgãos dos sentidos, mas mesmo assim seria notada e geraria uma vaga imagem sobre os deuses, uma imagem presente na mente de grande parte da Humanidade e de alguma forma reconhecível por ela. Essa seria uma possível explicação para o fato de a crença em seres divinos ser tão difundida entre os homens, embora não seja a única nem seja definitiva,
Para Epicuro, qualquer ser que possua inteligência e que não esteja sujeito à morte (pelo menos não da forma como o ser humano está sujeito) pode ser considerado um deus (isso incluiria anjos, orixás, espíritos e outros seres mitológicos). O termo que mais se adequa a essa descrição, se pararmos para pensar, é imortal. Epicuro considerava que os deuses de fato existem, e ao contrário dos seres humanos eles vivem em condições que os tornam praticamente imortais. Assim, eles não seriam afligidos pelo medo da morte, nem pela dor (que é basicamente uma resposta à fatores ameaçadores à vida), e seriam seres extremamente felizes. Como qualquer coisa existente no Universo, seriam formados por átomos em movimento, de forma que eles não são superiores à Natureza nem separados dela, antes fazem parte dela. Não teriam criado o Universo, mas surgido dentro dele, e não teriam poderes excepcionais, como os humanos costumam acreditar. De fato, Epicuro considera perfeitamente possível existir seres potencialmente imortais, mas não acreditava na existência de seres com poderes capazes de sobrepujar as leis naturais. Então, para resumir, Epicuro acreditava que os deuses eram seres potencialmente imortais porém sujeitos às leis da Natureza. Se os deuses forem como Epicuro os descreveu, tais seres não representam ameaça ao ser humano pelas seguintes razões:
- Muitos dos deuses adorados pelos homens não existem: deuses podem ser propositalmente criados pelas classes dominantes para incutir medo no povo e dominá-lo. Podem ser criados de modo inconsciente a partir de fenômenos naturais que erroneamente são atribuídos à uma causa inteligente. Podem ser derivados de personalidades que de fato existiram, mas que eram simples humanos. Assim como podem ser baseados em deuses presentes em outras culturas. Ver o exemplo de Serápis, uma divindade que foi criada no governo de Ptolomeu III, que se estendia sobre egípcios e gregos, e que era uma mistura de deuses das duas culturas, em uma tentativa de reforçar o domínio sobre esses povos. Muitos desses deuses possuem qualidades que são incompatíveis com uma criatura divina, como veremos a seguir.
- São extremamente felizes: esses seres não precisam dos homens para viver. Sendo totalmente independentes do homem, não possuem razão para nos ferir nem exigir nada de nós. Nada ganham com nosso sofrimento, nem ganham com oferendas e sacrifícios. Também não são acometidos por paixões humanas, como raiva, inveja, cobiça, luxúria, ciúmes, rancor e sede de poder. Tais sentimentos só podem existir em seres fracos, altamente sujeitos à morte e ao sofrimento, como os humanos. Deuses que são acometidos por tais qualidades muito provavelmente são fictícios, ou distorções derivadas de deuses reais.
- Eles não interagem conosco: manifestações divinas não são coisas comuns, pelo contrário, são na prática inexistentes. Os fenômenos naturais, que muitos interpretam como manifestações divinas (por exemplo o fogo, a chuva e o raio), são perfeitamente explicáveis do ponto de vista científico e não podem ser usados para demonstrar a ação divina. A ciência dos dias atuais avançou muito nesse sentido, mas já na Antiguidade houve tentativas de dar explicações racionais a esses fenômenos (o poema "A Natureza das Coisas", de Lucrécio, baseado nos ensinamentos de Epicuro, faz uma compilação de explicações de fenômenos naturais relacionadas aos movimentos dos átomos). Manifestações que inequivocadamente poderiam ser atribuídas aos deuses seriam as aparições em público (visuais ou auditivas, por exemplo) e manifestações de poder sobrenatural, que não poderiam ser explicadas pelos conhecimentos científicos atuais. Os relatos antigos de manifestações divinas, infelizmente, não são confiáveis, visto que os relatos podem ter sido distorcidos com a passagem do tempo. E nos tempos atuais, as manifestações que temos no presente momento ou são passíveis de explicação naturalista ou são fraudulentas. Há também muitos casos de pessoas que afirmam ser manifestações divinas, mas que não possuem nenhum atributo que possa ser exclusivamente atribuído à divindade (carisma e inteligência são qualidades humanas, e esse tipo de gente pode ou não ser má-intencionada). Então, das duas uma: ou os deuses não querem interagir conosco ou sequer são capazes de fazê-lo.
- Eles estariam longe: uma das possíveis razões para os deuses não conseguirem interagir com o homem é que eles viveriam em uma região do Universo diferente da nossa. Para Epicuro, essa região seria o Metakosmia, ou Intermundos, o espaço sideral, que fica entre os mundos habitados (sim, os epicuristas acreditavam na existência de vida em outros mundos). Uma região muito distante do mundo humano, talvez até inacessível. Nessa região, os átomos ou as leis da natureza ou algum outro aspecto da realidade seriam tais que permitiriam a existência de uma vida inteligente e imortal, como os deuses. É provável que, se os deuses habitassem mesmo uma região do Universo como essa, eles não teriam a capacidade de deixar essa região, ou que deixar essa região fosse perigosos ou lhe causasse sofrimentos e por isso eles evitassem sair de lá.
- Eles não seriam capazes de interagir com o homem: outra razão para os deuses não atuarem em nosso mundo. Se os deuses de fato habitam uma região com leis diferentes das do nosso mundo, ou são compostos por uma matéria diferente da nossa, é possível que eles não sejam capazes de atuar no nosso mundo ou a sua atuação em nosso mundo seja muito limitada. Nesse caso, eles não teriam capacidade para intervir em nossas vidas, nem para pior, nem para melhor, ou suas intervenções fossem muito fracas e pouco significativas. Isso se os seus órgãos dos sentidos forem capazes de apreender as sensações geradas pelos corpos terrenos. Eles podem muito bem serem "cegos", incapazes de perceber o que acontece em nosso mundo.
- Eles não querem interagir conosco: Os deuses vivem em uma realidade na qual podem ser plenamente felizes. Ao virem para o nosso mundo se deparariam com uma série de males e sofrimentos. Se não forem capazes de intervir, ficar aqui os forçaria à uma contemplação indigesta e inútil. Para Epicuro, nenhuma criatura inteligente se sujeitaria à tal contemplação. Não podendo intervir, eles retornariam ao Metacosmos, para viverem as suas vidas sem outras preocupações.
Se os deuses de fato existirem, e forem de fato capazes de intervir nas vidas humanas, então as pessoas deveriam adorar apenas os deuses bons e fieis, apenas os deuses que cumprem os acordos que fazem com os homens, cuja adoração renda bons frutos e que atuam de forma transparente, dando sinais inquestionáveis do seu poder. E só deveriam recorrer aos deuses para alcançar coisas que não podem ser alcançadas com o esforço humano, e tentar agir da forma mais independente possível, para não entrar em débito com esses seres. Isso é a minha opinião.
Epicuro, usando-se da ciência que dispunha na época (que era ainda fraca), tenta mostrar aos homens que não havia razões para os deuses serem temidos. Mas ele não faz isso por um mero interesse científico ou filosófico. Ele se preocupava com os efeitos práticos das crenças errôneas nos deuses. Essas crenças (chamadas genericamente de superstição) contituiriam em obstáculos para a busca da felicidade. Eis as consequências da superstição, e os porquês dela precisar ser combatida:
- Pessoas supersticiosas (com crenças errôneas sobre os deuses) podem abrir mão de prazeres simples e se sujeitar à dores e sofrimentos, inclusive se prejudicando e passando por necessidades, na busca de recompensas que na verdade nunca receberão.
- Pessoas supersticiosas tomam decisões baseadas em presságios sem significado concreto, premonições sem fundamento e orientações de líderes espirituais, muitas vezes ignorando seus sentidos, seus sentimentos, experiências prévias, os conselhos de entes queridos e amigos e a razão. Agindo de forma incoerente com a realidade, correm o risco maior de tomar decisões erradas e se prejudicarem.
- Pessoas supersticiosas são passíveis de exploração por autoridades espirituais e por autoridades terrenas que elas sancionam. E essa exploração vai desde a exploração econômica, exploração social, até a exploração mais grave de todas, que é a exploração militar.
- O medo constante dos deuses faz com que eles dediquem muito tempo e energia em esforços para apaziguá-los, tempo e energia que poderiam ser melhor aproveitados na busca por seus interesses. e necessidades. Além disso, o medo e a culpa de origem religiosa pode ser pernicioso, sendo desencadeado por causas banais mas difícil de se remover.
- O medo dos deuses pode reforçar o medo da morte, pelos castigos que poderiam sucedê-la. Como a morte é algo que atinge todos os seres humanos, promover o medo dela geraria um grande sofrimento coletivo, e causaria infelicidade. Epicuro acreditava que a morte não precisava ser temida, porque traz consigo a impossibilidade de sofrer. Falarei melhor do medo da morte em outro post.
- Fervor religioso é uma causa importante de animosidade entre as pessoas. O preconceito religioso contra pessoas que não se conformam às regras religiosas defendidas por indivíduos e grupos sociais motivam ações que ferem direta e indiretamente pessoas inocentes, nos casos mais graves levando à morte.
Se uma crença religiosa promove a felicidade do indivíduo, uma boa convivência com outras pessoas e traz prosperidade para a sociedade, então ela é boa, mesmo que seja errônea. O problema de uma crença boa mas errônea é que a base dela é frágil, e pode ser solapada pelo peso de evidências concretas, ameaçando os bons frutos por ela gerados. Assim, é importante que as pessoas procurem bases sólidas e coerentes para fundamentar bons comportamentos, pois estas bases resistirão muito mais às exigências da realidade, além de poderem ser avaliadas de modo objetivo e adotadas por pessoas que possuem opiniões e crenças diversas, o que inevitavelmente acontece em uma sociedade.
Epicuro aconselhava seus discípulos que fossem reverentes aos deuses que ele ensinava, não para se obter bênção ou proteção, mas para que se inspirassem neles como modelos de seres felizes. Epicuro não atacava diretamente a religião do seu povo. Ele inclusive encorajava a participação nos cultos públicos, e ele próprio teria participado de cerimônias religiosas. Talvez porque, na época dele, contestar o culto aos deuses fosse algo muito perigoso ou improdutivo (como é em muitos lugares mesmo nos dias de hoje). Um epicurista não precisa se preocupar com a crença religiosa dos outros, desde que essas não causem prejuízos claros a eles e aos outros. Antes de se preocupar com os outros, deve se preocupar consigo mesmo e acreditar em coisas que sejam coerentes e o tornem uma pessoa feliz.
Resumo:
- Deuses, caso existam, são seres praticamente imortais, de modo que não temem a morte, não são afetados pela dor da forma que os seres mortais são e não possuem fraquezas.
- Via de regra, os deuses não interagem conosco. Não há evidências suficientes que apontem o contrário. Então devemos agir de forma independente deles, considerando que eles não nos ajudarão, e confiando em nós mesmos e em nossos companheiros para resolver nossos problemas e buscar a felicidade.
- Se os deuses forem de natureza muito diferente da nossa (o que explicaria sua imortalidade) ou estiverem muito distantes, pode faltar a eles a capacidade e os meios de interagir conosco.
- Se não necessitam de nós para serem felizes ou nada ganham conosco, pode faltar aos deuses motivos para interagir conosco, de modo que não desejarão responder à oferendas e orações, nem terão motivos para nos ferir ou fazer mal.
- Porém, se for demonstrado que os deuses ganham algo com os homens, deveremos apoiar apenas os deuses que se mostrarem bons ou úteis para nós, e resistir à ação dos deuses ruins. Ou seja, devemos avaliar o culto aos deuses com critérios práticos e objetivos. Assim, afastaremos de nós os deuses maus e fortaleceremos os deuses bons (minha opinião, não há nada na doutrina epicurista que apoie esse ponto de vista).
- Se for demonstrado que os deuses nada perdem ao agirem sobre os homens, isso significará que eles, se agirem de forma consciente, nada farão para nos prejudicar, e só agirão em nosso benefício, o que seria uma notícia animadora (minha opinião). Afinal, um ser inteligente com uma felicidade inabalável não tem razão para causar sofrimento para outros seres, antes fará o possível para fazê-los felizes também.
- A superstição (crença errônea em deuses e forças sobrenaturais) é que é ruim, e não a religião. Devemos ser tolerantes com as religiões dos outros, desde que estas sejam tolerantes conosco e boas para os indivíduos e a sociedade.
Citações de Epicuro:
"Em primeiro lugar, considerando a divindade como um ente imortal e bem-aventurado, como sugere a percepção comum de divindade, não atribuas a ela nada que seja incompatível com a sua imortalidade, nem inadequado à sua bem-aventurança; pensa a respeito dela tudo que for capaz de conservar-lhe felicidade e imortalidade.
Os deuses de fato existem e é evidente o conhecimento que temos deles; já a imagem que deles faz a maioria das pessoas, essa não existe: as pessoas não costumam preservar a noção que têm dos deuses, ímpio não é quem rejeita os deuses em que a maioria crê, mas sim quem atribui aos deuses os falsos juízos dessa maioria. Com efeito, os juízos do povo a respeito dos deuses não se baseiam em noções inatas, mas em opiniões falsas. Daí a crença de que eles causam os maiores malefícios aos maus e os maiores benefícios aos bons. Irmanados pelas suas próprias virtudes, eles só aceitam a convivência com os seus semelhantes e consideram estranho tudo que seja diferente deles (Carta a Meneceu)"
"É inútil pedir aos deuses aquilo que podemos encontrar por nós mesmos."
"Se os deuses costumassem atender à orações os homens rapidamente pereceriam, pois esses vivem a desejar o mal um do outro".
Isso conclui minha postagem sobre o primeiro remédio. Em breve postarei sobre os demais remédios.
Até breve.
Fonte: Mauro: Epicurismo e Religião (doc)
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