domingo, 24 de setembro de 2017

Retorno à proposta original e anúncio de um novo Blog

No post Eutifron- diálogo de Platão eu dei início a uma experiência no blog, postando diálogos de que eu participava no Whatsapp. Rapidamente percebi que a produção de material do blog aumentou drasticamente (em um intervalo de 12 dias efetuei seis postagens, sendo que por muito tempo esse blog não tinha postagens novas). Para evitar que o conteúdo das postagens destoasse do propósito original desse blog, criei uma nova página, Filosofia no Whatsapp. Lá vocês poderão encontrar as postagens das conversas que eu tenho virtualmente, e uma ou outra postagem aleatória sobre temas que eu julgar pertinentes. Quanto a esse blog, manterei sua proposta original, postando somente temas direta ou indiretamente relacionados ao Epicurismo. Sou obrigado a reconhecer que o pensamento filosófico evoluiu muito desde aquela época, e que a doutrina epicurista pura já não responde os problemas atuais da forma que respondia em sua época. Porém, ela ainda assim pode ser fonte de reflexões muito interessantes sobre a busca pela felicidade, e mesmo possuindo milênios de idade ainda possui lições valiosas para nos ensinar.

Por ora concentrarei meus esforços no blog novo que criei, mas é bom conferir essa página de vez em quando. Pode ser que uma hora ou outra eu poste novos conteúdos aqui. Também tenho muitos rascunhos que pretendo postar quando estiverem melhor elaborados. Dito isso, espero que tenham uma leitura agradável e fico aberto a comentários e sugestões. Até breve.

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Um defensor da Terra Plana questiona a existência dos planetas

Resposta a um terraplanista que questiona a existência dos planetas:

"Como não é o caso [a terra é redonda e os planetas existem], as representações da terra como plana não podem ser interpretadas literalmente. Deve-se buscar um significado alegórico, simbólico.

Uma terra esférica em um sistema solar heliocêntrico não descarta uma posição importante do ser humano no Universo, nem descarta um interesse de Deus pelo ser humano em particular.

Quanto à existência de vida em outros planetas, seria muito estranho um Deus tão poderoso criar bilhões de estrelas no universo e só criar a vida em um mundo específico no Cosmos.

Giordano Bruno defendia que existiam vários mundos habitados no Universo, não só a Terra."

sábado, 16 de setembro de 2017

Discussão aleatória sobre o que é Filosofia

Interlocutor 1: A Filosofia sim, provoca, queima o coco mesmo, lhe obriga a ser e extrair o melhor de si, a razão queima a carne, rasga a alma, se não é a história do continho de fadas, do passarinho verde

Interlocutor 2: A filosofia se expande alem do lado fisico . A filosofia faz voce pensar em tudo com olhares mais profundo e com intensa curiosidade das coisas existenciais e espirituais até

Interlocutor 3: A filosofia é a ciência mais exata. Pois há três pontos de estudo do objeto que é o ser humano. À área central de estudos  epistemológica. É como ver o vento a filosofia. Por isso, poucas pessoas conseguem entende-la...

Interlocutor 1: A Filosofia é a essência se td ao meu ver, por exemplo, se alguém me chama de idiota, n me ofende, sei q eu o sou, pq sabemos q idiota é aquele e olha para o seu próprio umbigo, e qm n é assim, o q fazemos é: a partir do momento q adquirimos consciência q somos assim, começamos a lutar contra nós mesmos para n o ser ou não ser conpletamente...

Interlocutor 2: Se a filosofia é  baseada no principio vital de buscar o desconhecido por meios indagativos é de se concluir que ela gerou a ciencias que existiam no passado remoto e a evoluçao cientifica que temos hoje

Interlocutor 4: A função dela é problematizar, encontrar problemas. De modo que, muitas vezes seu produto não é uma resposta, mas novas perguntas

Interlocutor 5: Todos nós temos uma concepção filósofica, diferentemente um do outro. Ou seja concepção de mundo

Interlocutor 4: Visões de mundo possuem outros elementos alem dos filosóficos . É difícil ter unanimidade na filosofia. Mas é possível estabelecer acordos pra viabilizar a discussão e as trocas de ideias

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Kant, Razão Pura e Akribeia

Citação de Kant, Crítica da Razão Pura, Introdução, subseção III

"Há uma coisa ainda mais importante que o que precede: certos conhecimentos por meio de conceitos, cujos objetos correspondentes não podem ser fornecidos pela experiência, emancipam-se dela e parece que estendem o círculo de nossos juízos além dos seus limites.

Precisamente nesses conhecimentos, que transcendem ao mundo sensível, aos quais a experiência não pode servir de guia nem de retificação, consistem as investigações de nossa razão, investigações que por sua importância nos parecem superiores, e por seu fim muito mais sublimes a tudo quanto a experiência pode apreender no mundo dos fenômenos; investigações tão importantes que, abandoná-las por incapacidade, revela pouco apreço ou indiferença, razão pela qual tudo intentamos para as fazer, ainda que incidindo em erro.

Esses inevitáveis temas da razão pura são: Deus, liberdade e imortalidade. A ciência cujo fim e processos tendem à resolução dessas questões denomina-se Metafísica. Sua marcha, é, no princípio, dogmática; quer dizer, ela enceta confiadamente o seu trabalho sem ter provas na potência ou impotência de nossa razão para tão grande empresa."

Interlocutor 1: interessante a critica de kant...mais no fim a ciência trabalha com as provas e a Religião com a fé.
A razão é da Ciência  mais essa observação cabe fazer apenas aqueles que tem uma boa observação.

Eu: Kant não fala da razão empírica, própria do método científico , mas da razão pura, sem os dados empíricos. Ele está tentando justamente demonstrar os limites da razão pura pra alcançar o conhecimento. Nesse caso não está sendo debatido a fé.

Interlocutor 1: 👍

Eu: "É sinal de um espírito cultivado não exigir de um objeto mais exatidão (Akribeia) do que o que o objeto exige". Aristóteles, Ética à Nicômaco.

Matemática é uma ciência exata. Portanto seus resultados devem ser exatos. As ciências naturais exigem a verificação por meios empíricos. Quanto mais verificado for uma teoria científica, mais validade ela tem. Já as ciências humanas (ética, política, psicologia...) não permitem tal exatidão. O que não quer dizer que nenhuma verdade é possível por meio dessas ciências, ou que não se pode descartar certos erros por meio delas.

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Stephen Hawking, Ciência e Sentido da Vida

Interlocutor 1: Alguém aqui consegue explicar em termos bastante simples pra leigos qual foi a contribuição de Hawking para a compreensão do início do universo? E pq a teoria dele é conhecida como a teoria de tudo?

Eu: [após uma rapida consulta à Wikipedia] Ele conciliou parcialmente a teoria da relatividade geral com a física quântica. Isso produziu um modelo teórico que consegue explicar como as partículas quânticas surgiram após o Big Bang. Os cálculos dele permitem calcular a velocidade de expansão do universo e, fazendo o movimento reverso, determinar o momento do Big Bang. Ele também conseguiu elaborar teorias que explicam alguns fenômenos relacionados aos buracos negros, como a emissão de energia  (coisa que em um primeiro momento parece contraditório).
Hawking é filosoficamente um tanto restrito. Ele acha que o método científico será capaz de responder a todas as questões filosóficas, o que acho pouco provável. Quero ver se a ciência poderá descobrir o sentido da vida, por exemplo. Seu pensamento lembra Carnap, do círculo de Viena.

Interlocutor 1: E a vida tem sentido? Ou sentido absoluto? Esse lance de "sentido da vida" ja partiu do pressuposto de que as coisas têm propósitos determinados

Eu: Não realmente. É difícil falar em um sentido original, mas o ser humano tem poder pra criar seu próprio sentido. Mas que meio ele deve usar pra criar esse sentido? Um puramente científico? Um puramente filosófico? Uma mistura dos dois?
Eu acho que a ciência pura não dá conta dessa tarefa. Um pouco de filosofia é necessário para a elaboração do sentido.

Interlocutor 1: Quase todas as buscas de sentido humano são estabelecidos claramente por preceitos biológicos
O Maslow elencou a pirâmide das necessidades... Necessidade de provisões, de segurança, relacionamento social, afetivo e realização pessoal.... Se vc parar de romantizar muito, perceberá q o ser humano é bem superficial

Eu: O fundamento do ser humano é biológico, mas os fenômenos que isso origina podem extrapolar a biologia. Envolvimento afetivo, por exemplo. Por que algumas pessoas se contentam com um relacionamento físico e outras buscam algo mais? E realização profissional, porque isso varia tanto de pessoa a pessoa? É possível considerar só variáveis biológicas pra definir o que realiza un ser humano? Ou precisamos usar outras informações, como dados biográficos, históricos, reflexões de cunho filosófico? E o senso estético? Por que o ser humano se sente atraído por formas particulares de percepção sensorial ou de estruturas narrativas? A biologia basta pra explicar isso? Ou é necessário algo mais? E isso é perfeitamente compatível com uma visão materialista de mundo, físico-biológica. Aí pergunta: pode a física e a biologia resolver todos esses problemas?

Interlocutor 1: O ser humano busca algo mais com relação a relacionamentos pq estamos em média condicionados a isso biologicamente.... li artigos que relacionavam isso com o senso de preservação, a afetividade nos dá sensação de proteção e segurança. Temos tbm um instinto inovador.... ou seja, não gostamos do tédio ou de mesmices... buscamos incessantemente experimentar sensações novas.
A variação de pessoa pra pessoa ocorre por dois motivos. Primeiro pq cada organismo vivo é biologicamente diferente de tudo oq já existiu e cada indivíduo experimenta um horizonte de sentido ambiental diferente, e isso formata a foma como o nosso organismo é estruturado em essência. Então temos dois arranjos singulares aqui.... um espaço único no mundo do ambiente (cada indivíduo vê coisas diferentes, sob ângulos diferentes, tem experiências únicas) e nosso organismo é organizado de maneira única
Experiência profissional já falei sobre, tbm o senso estético... acho q é isso.
ntão, claro q temos uma árvore cheia de milhares de pequenas raízes... então é tudo muito complexo. Mas acho q no fim-último, tudo converge nessa direção

Eu: eu ainda acho que a biologia é meio limitada. É certamente o ponto de partida, mas não parece ser um ponto de chegada obrigatório

Interlocutor 1: Me parece que é ambas, dentro de nosso escopo.... o ser humano é muito instintivo, como as demais espécies. E temos múltiplos instintos.... grande parte deles provocando incontáveis males ao indivíduo... oq evidencia que a estruturação corpórea da nossa espécie não é direcionada. Somos oq somos por uma cadência de eventos aleatórios.... alguns propiciaram características vantajosas e outras nem tanto....

Agostinho sobre a Interpretação das Escrituras

Agostinho de Hipona- *De Doctrina Christiana:*
Hermenêutica Bíblica, interpretação do texto sagrado

Baseado no comentário de Noeli Dutra Rossatto, "Agostinho Educador"

- Regra de Ouro da Hermenêutica: “ _tudo quanto na Divina Palavra não puder ser referido em sentido próprio nem às honestidades dos costumes nem às verdades da fé tem que ser tomado em sentido figurado_

3 regras adicionais da interpretação da Escritura:
- Não admitir interpretações que conduzam ao mal ou à iniquidade;
- não admitir passagens improváveis do ponto de vista material (ex: após a criação todos os animais comiam frutos e ervas). _Tal afirmação é pró-científica_(adendo meu)
- não admitir que a ausência de uma afirmação do positivo conduza a uma conclusão para o negativo.

A necessidade ética e as verdades da fé não estão contidas abertamente no texto bíblico. Por isso a importância da tradição da Igreja para orientar a interpretação do texto (segundo Agostinho)

sábado, 9 de setembro de 2017

Eutífron- diálogo de Platão

Decidi fazer uma experiência. Percebi que produzo mais em textos de whatsapp que no blog (que por sinal fica abandonado por meses). Estou em grupos de discussão sobre política, religião, filosofia e demais temas polêmicos. Se eu postar algo interessante nos grupos postarei aqui também. Não adotarei critérios tão rígidos de citações ou bibliografia como fiz anteriormente. Os conteúdos também terão uma variedade maior. Bom, Epicuro não se importaria com tal intromissão, visto sua paixão pela filosofia de modo geral.

No diálogo Eutífron, o personagem que dá nome ao texto define "piedade" (ou justiça ou bem) como "fazer aquilo que agrada os deuses". O curso do diálogo, repleta de interrogações feitas por Sócrate (cujas respostas não são esgotadas no diálogo) me levaram a propor os seguintes questionamentos (alguns explicitados no próprio diálogo:

- Algo é justo quando agrada aos deuses? Ou os deuses se agradam de algo porque essa coisa é justa?

- no primeiro caso, se os deuses se agradarem com algo mau, ele passa a ser justo? Se sim, o conceito de justiça sempre muda conforme a vontade divina. Se não, isso significa que os deuses podem agir injustamente.

- no segundo caso, se a justiça não é determinada pelos deuses, então o que determina o que é justo? E como os deuses fazem para saber o que é justiça? Teriam eles uma qualidade para compreender a justiça diversa do ser humano?

- se dois deuses discordarem a respeito do que é justo, como julgar qual deles está certo? Se usarmos um critério extradivino já estaremos admitindo que a justiça é algo exterior aos deuses, ou que o relato divino não é um meio exclusivo para se conhecer a justiça.

- Aos monoteístas, que só acreditam em um Deus, a dúvida anterior não faz sentido. Mas podemos questionar o seguinte: se dois relatos discordantes forem atribuídos à mesma Divindade, como reconhecer qual deles é o mais justo? Uma vez que ambos os relatos são considerados divinos, pelo menos um deles estaria incorreto, mesmo que parcialmente.

- E se só temos um relato divino sobre o que é justo, ainda assim poderíamos ou deveríamos submeter esse único relato à um julgamento? Ou seria mais justo seguir o comando divino sem realizar questionamentos?

- Seria possível ao ser humano conhecer o que é justo sem se comunicar com os deuses? Se sim, que meios ele poderia usar para esse fim?

- Os deuses sempre comunicam aos homens o que é justo? E se o comunicam, sempre o fazem de forma clara? Se não o fazem, por quê se omitem?

- Os deuses sempre agem de forma justa? Ou eles podem agir injustamente?

- supondo que a capacidade divina de conhecer a justiça é superior à do ser humano, isso significa necessariamente que ela é ilimitada? Ou mesmo a divindade teria limitações nesse sentido? Se ela for limitada, isso não abriria espaço para uma ação humana que contrarie a justiça divina? (A maioria dos monoteístas considera que Deus tem uma capacidade de justiça ilimitada)

- Ter conhecimento ilimitado sobre a justiça é suficiente para assegurar uma ação justa? Ou é possível um deus agir de forma injusta propositalmente?

- se a capacidade humana de conhecer a justiça é limitada, seria "justo" por parte do ser humano emitir juízos definitivos sobre o que é justiça? E o fato de não poder conhecer plenamente a justiça de uma ação poderia ser usado para condenar ou justificar essa ação?

- Se justificamos uma ação por conta da ignorância, essa ação se torna mais justa? Se sim, haveria vantagem em tentar aumentar nosso conhecimento sobre o que é justiça?

Assim como o diálogo, deixo essas questões em aberto para o leitor.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

O Numinoso e o Transcendental

Awe: palavra inglesa que designa um sentimento arrebatador de maravilhamento, fascínio e temor. Sua tradução para o português é difícil, pode ser traduzido como numinoso ou fascínio. Está associado ao transcendental.

O numinoso pode ser desencadeado por uma série de fenômenos considerados marcantes por aqueles que os contemplam: belezas naturais (céu, mares, montanhas, florestas, canyons), eventos naturais (tempestades, tornados, eclipses, enchentes, o nascer e o pôr do sol), e eventos humanos, como o nascimento de um bebê, um encontro com uma pessoa importante ou situações de morte iminente. Algumas pessoas podem ter essas experiências espontaneamente. Muitos estudiosos das religiões acreditam que a experiência religiosa e o surgimento das religiões está vinculada justamente a este sentimento numinoso, o que explica o poder que as religiões e crenças espirituais tem no ser humano. Também explica porque muitas práticas religiosas estão associadas a momentos importantes da vida do ser humano: o nascimento, a puberdade, o casamento, a morte.

Muitas práticas religiosas visam justamente desencadear esses sentimentos numinosos em seus fiéis: templos suntuosos com imagens coloridas, velas e incensos aromáticos, práticas de ascetismo (orações repetitivas, jejum, autoflagelação, abstinência de certos alimentos, celibato), música sacra, sacrifícios, congregação de grande número de pessoas. Muitas práticas religiosas envolvem o uso de substâncias psicoativas e alucinógenas. Deuses, santos, seres mitológicos e espíritos ancestrais seriam figuras dotadas de prestígio que tem poder de desencadear esses sentimentos nos fiéis. O numinoso explicaria as experiências místicas e o fervor religioso, nos quais o indivíduo se sente absorvido e sobrepujado pela emoção, e adquire um sentimento de transcendência, de pertencimento a algo maior. Tais experiências podem ter um efeito transformador no indivíduo.

A pessoa religiosa basicamente estaria buscando por esse tipo de experiência e fazendo uso da religião para tal. Mas também é possível alcançar esses sentimentos sem aderir a práticas religiosas. Vale lembrar que essa explicação do fenômeno religioso não torna a experiência religiosa uma coisa necessariamente falsa. Se o denominador comum das religiões for justamente o sentimento numinoso, então todas as religiões e práticas espirituais estariam corretas desde que forneçam isso aos seus fiéis. Dogmas e preceitos seriam partes secundárias da prática religiosa, portanto dispensáveis. Compreender o sentimento numinoso é importante para os ateus e agnósticos, para que eles possam compreender o pensamento das pessoas religiosas e espirituais, e para que eles mesmos possam ter acesso a esses sentimentos, pelos meios que julgarem mais adequados.

Fontes: a maioria dos textos que eu li está em inglês. Pesquise por “awe”, experiência mística, numinoso, Jung, antropologia da religião, psicologia da religião e termos afins.

PS: Epicuro era conhecido por participar de cultos aos deuses gregos, mesmo que em sua doutrina ele pregue que os deuses não se interessam pelos seres humanos. Ele ensinava os seus discípulos a respeitarem os cultos aos deuses e a praticarem a contemplação dos deuses como modelos de perfeição e felicidade. Pode ser que Epicuro estivesse, à sua maneira, buscando o sentimento numinoso como uma forma de se alcançar um estado de felicidade.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Uma visão funcionalista do epicurismo (e da religião)

Religiões existem desde o início da existência do ser humano da Terra. Elas surgiram nos mais diversos contextos sociais, ambientais e históricos possíveis. E elas assumem as mais diversas formas, no que se refere às crenças adotadas, à ritualística e o modo como determinam os costumes e comportamentos de seus fiéis. Diante disso, apresentarei uma visão funcionalista dos sistemas de crença existentes (inclusive sistemas como o ateísmo e o epicurismo).

Um sistema de crença que vise dar um propósito à existência humana, para se mostrar útil, deve responder as seguintes questões:

1- Como lidar com a morte?
2- Como lidar com o sobrenatural e o divino?
3- Como lidar com o sofrimento?
4- Como promover a felicidade humana?

Essas perguntas que fiz irão remeter aos quatro remédios de Epicuro. Em breve falaremos nisso. Mas essas quatro perguntas são muito úteis para orientar o estudo de uma religião ou sistema de crenças.

Diante disso, vamos ver que opções de resposta cada pergunta pode receber (essas são as principais opções de resposta, pode-se considerar outras respostas como possíveis):

1- Como lidar com a morte?
a) Considerando que ela representa o fim da consciência humana, portanto o fim da dor e do sofrimento, e não precisa ser temida por si (o que se deve temer são os processos dolorosos que levam à morte)
b) Considerando que é impossível se obter respostas definitivas sobre o assunto (evitando então o comportamento especulativo)
c) Considerando que ela não é definitiva e que uma parte da consciência (a alma) sobrevive após a morte (se esse for o caso, novas perguntas surgirão)
    c1) que métodos podemos nos utilizar para se obter respostas sobre a existência pós-morte?
    c2) é possível que após a morte a alma experimente estados de bem-aventurança? Se for esse o
    caso, o que fazer para se obter, prolongar ou maximizar esse estado?
    c3)é possível que a alma seja submetida à sofrimentos após a morte? Se for esse o caso, o que fazer
    para evitar, abreviar ou minimizar esses sofrimentos?
    c4) é possível que a alma passe por novas existências como ser vivente, seja humano
   (reencarnação) ou de outras espécies (metempsicose)? Se for esse o caso, como controlar o
   processo de reencarnação a nosso favor?
d) considerar que é possível evitá-la ou revertê-la por meio do desenvolvimento tecnológico e da Ciência, e fundamentar suas esperanças nessa possibilidade

2- Como lidar com o sobrenatural e o divino?
a) Considerando que tais fatos não existem, portanto qualquer sentimento negativo relativo a isso é infundado.
b) Considerando que tais fenômenos existem, mas que eles não afetam diretamente nossa existência, sendo assim irrelevantes, e sentimentos negativos relativos a isso são infundados.
c) Considerando que tais fenômenos existem e podem afetar diretamente nossa existência (se esse for o caso, novas perguntas surgirão)
    c1) que métodos podemos nos utilizar para se obter respostas sobre o divino e o sobrenatural?
    c2) se tal instância pode ter efeitos positivos, como obter ou maximizar esses efeitos?
    c3) se tal instância pode ter efeitos negativos, como evitar ou minimizar esses efeitos?

3- Como lidar com o sofrimento?
a) Considerar que o sofrimento é uma condição temporária e autolimitada e se limita a essa vida
b) Considerar que o sofrimento será recompensado em um momento posterior (como uma vida futura)
c) considerar que por meio de certas práticas é possível evitar a ocorrência de sofrimentos nessa vida ou em uma vida futura
d) ver o sofrimento como algo ilusório, invalidar sua existência e significado.
e) Utilizar válvulas de escape e mecanismos de fuga para poder ignorar o sofrimento

4- Como promover a felicidade humana?
a) considerar que por meio de certas práticas pode-se obter a felicidade em uma vida futura
b) considerar a satisfação moderada dos desejos como um meio de se obter prazer, dando preferência a desejos naturais e evitando-se desejos supérfluos ou de realização difícil.
c) considerar a satisfação irrestrita de todos os desejos, utilizando-se de todos os meios necessários para tal fim.

A maioria das religiões responde a essas quatro perguntas, cada uma a sua maneira. Ideologias e sistemas de pensamento que questionam as religiões também o fazem (como o ateísmo, por exemplo).

E o Epicurismo? Como se posiciona diante de tal assunto? Eis o que exponho adiante:

1- Como lidar com a morte?
a) Considerando que ela representa o fim da consciência humana, portanto o fim da dor e do sofrimento, e não precisa ser temida por si (o que se deve temer são os processos dolorosos que levam à morte)
Essa visão representa o remédio "não temer a morte". Epicuro considera que a consciência humana (alma) é formada por "átomos" e que seu funcionamento está intimamente ligado ao funcionamento do corpo. Diante da morte, tanto o corpo quanto a alma entram em decomposição e o indivíduo deixa de existir, esgotando toda e qualquer possibilidade de sofrimento.

2- Como lidar com o sobrenatural e o divino?
b) Considerando que tais fenômenos existem, mas que eles não afetam diretamente nossa existência, sendo assim irrelevantes, e sentimentos negativos relativos a isso são infundados.
Essa visão representa o remédio "não temer os deuses". Epicuro acreditava que a existência dos deuses e do sobrenatural são fatos, pois essa são crenças demasiado arraigadas entre os homens, e portanto devem ter fundamentos na realidade. Porém, ele acreditava que os deuses, por serem seres felizes e bem aventurados, não teriam interesse na existência humana, que tem muitos sofrimentos e perturbações. Ademais, os deuses são feitos de uma substância diferente do homem, e podem assim serem incapazes fisicamente de ter uma interação significativa com os seres humanos, ao ponto de afetarem ou governarem seus destinos.

3- Como lidar com o sofrimento?
a) Considerar que o sofrimento é uma condição temporária e autolimitada e se limita a essa vida
Essa visão representa o remédio "o que é mau é fácil de suportar". Entende-se por mau tudo que provoque dor ao homem ou reduza sua vitalidade. Epicuro usava um argumento fisiológico para o seu método de lidar com o sofrimento: se não está pautado em uma necessidade (integridade física, alimento, abrigo, segurança, companhia), então o sofrimento é infundado e pode ser ignorado (ex.: ficar triste por não conseguir comprar uma roupa de grife, mesmo tendo várias roupas à disposição). Sofrimentos associados à necessidades devem ser combatidos, pois do contrário trarão ao indivíduo doença e morte. E a percepção do sofrimento muda à medida que somos a ele expostos. Sofrimentos intensos tendem a ser de curta duração, e sofrimentos prolongados tendem a ficar suportáveis com o tempo. A própria cessação de um sofrimento traz consigo prazer, o que é uma coisa boa, e inclusive há prazeres que só podem ser obtidos quando se suporta certos sofrimentos. Tendo isso em mente, é possível ficar tranquilo diante da dor e suportar o sofrimento com resignação.

4- Como promover a felicidade humana?
b) considerar a satisfação moderada dos desejos como um meio de se obter prazer, dando preferência a desejos naturais e evitando-se desejos supérfluos ou de realização difícil.
Essa visão representa o remédio "o que é bom é fácil de se alcançar". Entende-se por bom tudo que traga prazer ao homem ou aumente sua vitalidade. O argumento para lidar com o prazer tem um aspecto fisiológico (similar ao sofrimento) e um aspecto prático. O aspecto fisiológico diz que a simples satisfação das necessidades básicas do ser humano (integridade física, alimento, abrigo, segurança, companhia) já gera níveis importantes de prazer e são relativamente fáceis de se alcançar. Já desejos supérfluos (comidas caras, roupas caras, fama, vaidade, desejo de poder) não correspondem a nenhuma necessidade básica do ser humano, e perseguir tais desejos exige muito esforço, o que provoca a fadiga. Epicuro não aprova a busca irrestrita da satisfação dos desejos por motivos práticos, que são:
a) alguns desejos, quando satisfeitos, podem desencadear processos que promovem dores maiores que os prazeres obtidos (ex.: abuso de drogas levando à dependência e doenças)
b) a busca por satisfação de desejos encoraja a competição e a violação de leis e costumes, causando sofrimentos a outras pessoas e atraindo inimizades (o que impõe mais obstáculos à satisfação dos desejos)
c) alguns desejos, para serem satisfeitos, exigem que a pessoa renuncie a coisas que são necessárias ou que em algum momento exigiram muito esforço para serem alcançadas, o que pode colocar o indivíduo em uma situação pior que a situação atual.
Minimizando nossos desejos ao essencial, temos mais chances de conseguir o que queremos e menos risco de atrair inimizades, livrando-se assim da ansiedade e alcançando um estado de tranquilidade (ou ataraxia).

Partindo-se do princípio de que os pressupostos epicuristas estão corretos, creio que ele pode cumprir de modo satisfatório o que se propõe à fazer (promover a felicidade e minimizar o sofrimento). A discussão, porém, fica em aberto. Aqueles que não concordam com o Epicurismo, parcial ou totalmente, ou são adeptos de outras religiões e sistemas de pensamento ainda podem se utilizar desse método funcionalista para analisar outras crenças e chegar às próprias conclusões.

Até breve.

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Marcus Aurelius e os deuses

Viva uma boa vida. Se Deuses existirem e eles forem justos, então eles não vão se importar com o quão devoto você foi, mas vão lhe acolher baseado nas suas virtudes vividas por você. Se Deuses existirem, mas injustos, então você não deve querer adorá-los. Se Deuses não existirem, então você partirá, mas terá vivido uma nobre vida, que irá perdurar e continuar nas memorias dos seus amados.
Marcus Aurelius, imperador romano, 121-180 D.C.

Embora a influência de Marcus Aurelius tenha sido mais provavelmente o Estoicismo, tal fala é muito compatível com o pensamento epicurista, particularmente com o primeiro remédio (não temer os deuses). Vale lembrar que esse imperador participava dos cultos aos deuses romanos e encorajava seus súditos a fazer o mesmo. Vamos então esmiuçar a expressão acima:

- Um deus justo não se preocupa com devoção, mas com justiça e virtude: um deus justo não se preocupa com tabus, rituais e prescrições religiosas, mas com caráter e atitude. Se ele for de fato justo, a adesão a regras religiosas seria vã para pessoas de má índole. O destaque para as virtudes vem do Estoicismo, que as considera como absolutas (coragem, generosidade, justiça, temperança, entre outras) e que por si só trazem felicidade aos seres humanos. Tal pensamento não se faz presente no Epicurismo, que recomenda boas condutas por motivos práticos (basicamente evitar problemas com outras pessoas) e não tem um conceito bem-definido de virtude.

- Um deus injusto não deve ser adorado: um deus pode ser injustamente bom ou injustamente ruim. Um deus injusto tenderia a ser egoísta, ingrato e caprichoso. Há também a possibilidade da divindade ser indiferente, sendo essa uma idéia muito presente no Epicurismo. Partindo do princípio de que tal deus não dependa do ser humano para existir, interagir com tal entidade seria uma fonte mais de problemas e preocupações do que bênçãos e recompensas. Nesse caso, é até melhor evitar chamar a atenção de tal divindade, para que ela não venha a causar problemas para as pessoas.

- Um bom viver lhe renderá bons frutos, quer os deuses existam ou não: Marco Aurélio aponta uma boa memória como um benefício de uma boa vida. Se tal memória não beneficia diretamente o detentor de um bom nome, pelo menos beneficia sua família, seus amigos e os ideais pelos quais essa pessoa lutou. E mais, se uma pessoa vive uma vida boa, sem provocar mal ao seu próximo, terá menos inimizades, menos preocupações, menos pessoas fazendo oposição aos seus planos e assim terá mais possibilidades para alcançar seus objetivos e viver em tranquilidade. E isso ocorrerá por motivos práticos e por causas evidentes. Embora não seja possível garantir que uma pessoa boa tenha uma vida boa, as chances disso acontecer são com certeza maiores para os bons do que para os maus.

Essa expressão atribuída a Marco Aurélio ajuda a expressar de forma sucinta e clara o pensamento epicurista relativo a Deus (ou deuses e outras divindades). Nota-se que a existência ou não dos deuses se torna algo irrelevante perante tal pensamento, o que é bom, visto que há muita controvérsia a esse respeito. Devemos considerar que uma boa conduta sempre nos recompensará de alguma forma, pois isso nos manterá motivados a agir bem, independente de nossas crenças. Isso também pode ajudar a orientar e dialogar com pessoas que tenham crenças diferentes das nossas, e a chegar a consensos que permitam uma convivência pacífica, apesar das diferenças.

Até breve.