segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

O Numinoso e o Transcendental

Awe: palavra inglesa que designa um sentimento arrebatador de maravilhamento, fascínio e temor. Sua tradução para o português é difícil, pode ser traduzido como numinoso ou fascínio. Está associado ao transcendental.

O numinoso pode ser desencadeado por uma série de fenômenos considerados marcantes por aqueles que os contemplam: belezas naturais (céu, mares, montanhas, florestas, canyons), eventos naturais (tempestades, tornados, eclipses, enchentes, o nascer e o pôr do sol), e eventos humanos, como o nascimento de um bebê, um encontro com uma pessoa importante ou situações de morte iminente. Algumas pessoas podem ter essas experiências espontaneamente. Muitos estudiosos das religiões acreditam que a experiência religiosa e o surgimento das religiões está vinculada justamente a este sentimento numinoso, o que explica o poder que as religiões e crenças espirituais tem no ser humano. Também explica porque muitas práticas religiosas estão associadas a momentos importantes da vida do ser humano: o nascimento, a puberdade, o casamento, a morte.

Muitas práticas religiosas visam justamente desencadear esses sentimentos numinosos em seus fiéis: templos suntuosos com imagens coloridas, velas e incensos aromáticos, práticas de ascetismo (orações repetitivas, jejum, autoflagelação, abstinência de certos alimentos, celibato), música sacra, sacrifícios, congregação de grande número de pessoas. Muitas práticas religiosas envolvem o uso de substâncias psicoativas e alucinógenas. Deuses, santos, seres mitológicos e espíritos ancestrais seriam figuras dotadas de prestígio que tem poder de desencadear esses sentimentos nos fiéis. O numinoso explicaria as experiências místicas e o fervor religioso, nos quais o indivíduo se sente absorvido e sobrepujado pela emoção, e adquire um sentimento de transcendência, de pertencimento a algo maior. Tais experiências podem ter um efeito transformador no indivíduo.

A pessoa religiosa basicamente estaria buscando por esse tipo de experiência e fazendo uso da religião para tal. Mas também é possível alcançar esses sentimentos sem aderir a práticas religiosas. Vale lembrar que essa explicação do fenômeno religioso não torna a experiência religiosa uma coisa necessariamente falsa. Se o denominador comum das religiões for justamente o sentimento numinoso, então todas as religiões e práticas espirituais estariam corretas desde que forneçam isso aos seus fiéis. Dogmas e preceitos seriam partes secundárias da prática religiosa, portanto dispensáveis. Compreender o sentimento numinoso é importante para os ateus e agnósticos, para que eles possam compreender o pensamento das pessoas religiosas e espirituais, e para que eles mesmos possam ter acesso a esses sentimentos, pelos meios que julgarem mais adequados.

Fontes: a maioria dos textos que eu li está em inglês. Pesquise por “awe”, experiência mística, numinoso, Jung, antropologia da religião, psicologia da religião e termos afins.

PS: Epicuro era conhecido por participar de cultos aos deuses gregos, mesmo que em sua doutrina ele pregue que os deuses não se interessam pelos seres humanos. Ele ensinava os seus discípulos a respeitarem os cultos aos deuses e a praticarem a contemplação dos deuses como modelos de perfeição e felicidade. Pode ser que Epicuro estivesse, à sua maneira, buscando o sentimento numinoso como uma forma de se alcançar um estado de felicidade.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Uma visão funcionalista do epicurismo (e da religião)

Religiões existem desde o início da existência do ser humano da Terra. Elas surgiram nos mais diversos contextos sociais, ambientais e históricos possíveis. E elas assumem as mais diversas formas, no que se refere às crenças adotadas, à ritualística e o modo como determinam os costumes e comportamentos de seus fiéis. Diante disso, apresentarei uma visão funcionalista dos sistemas de crença existentes (inclusive sistemas como o ateísmo e o epicurismo).

Um sistema de crença que vise dar um propósito à existência humana, para se mostrar útil, deve responder as seguintes questões:

1- Como lidar com a morte?
2- Como lidar com o sobrenatural e o divino?
3- Como lidar com o sofrimento?
4- Como promover a felicidade humana?

Essas perguntas que fiz irão remeter aos quatro remédios de Epicuro. Em breve falaremos nisso. Mas essas quatro perguntas são muito úteis para orientar o estudo de uma religião ou sistema de crenças.

Diante disso, vamos ver que opções de resposta cada pergunta pode receber (essas são as principais opções de resposta, pode-se considerar outras respostas como possíveis):

1- Como lidar com a morte?
a) Considerando que ela representa o fim da consciência humana, portanto o fim da dor e do sofrimento, e não precisa ser temida por si (o que se deve temer são os processos dolorosos que levam à morte)
b) Considerando que é impossível se obter respostas definitivas sobre o assunto (evitando então o comportamento especulativo)
c) Considerando que ela não é definitiva e que uma parte da consciência (a alma) sobrevive após a morte (se esse for o caso, novas perguntas surgirão)
    c1) que métodos podemos nos utilizar para se obter respostas sobre a existência pós-morte?
    c2) é possível que após a morte a alma experimente estados de bem-aventurança? Se for esse o
    caso, o que fazer para se obter, prolongar ou maximizar esse estado?
    c3)é possível que a alma seja submetida à sofrimentos após a morte? Se for esse o caso, o que fazer
    para evitar, abreviar ou minimizar esses sofrimentos?
    c4) é possível que a alma passe por novas existências como ser vivente, seja humano
   (reencarnação) ou de outras espécies (metempsicose)? Se for esse o caso, como controlar o
   processo de reencarnação a nosso favor?
d) considerar que é possível evitá-la ou revertê-la por meio do desenvolvimento tecnológico e da Ciência, e fundamentar suas esperanças nessa possibilidade

2- Como lidar com o sobrenatural e o divino?
a) Considerando que tais fatos não existem, portanto qualquer sentimento negativo relativo a isso é infundado.
b) Considerando que tais fenômenos existem, mas que eles não afetam diretamente nossa existência, sendo assim irrelevantes, e sentimentos negativos relativos a isso são infundados.
c) Considerando que tais fenômenos existem e podem afetar diretamente nossa existência (se esse for o caso, novas perguntas surgirão)
    c1) que métodos podemos nos utilizar para se obter respostas sobre o divino e o sobrenatural?
    c2) se tal instância pode ter efeitos positivos, como obter ou maximizar esses efeitos?
    c3) se tal instância pode ter efeitos negativos, como evitar ou minimizar esses efeitos?

3- Como lidar com o sofrimento?
a) Considerar que o sofrimento é uma condição temporária e autolimitada e se limita a essa vida
b) Considerar que o sofrimento será recompensado em um momento posterior (como uma vida futura)
c) considerar que por meio de certas práticas é possível evitar a ocorrência de sofrimentos nessa vida ou em uma vida futura
d) ver o sofrimento como algo ilusório, invalidar sua existência e significado.
e) Utilizar válvulas de escape e mecanismos de fuga para poder ignorar o sofrimento

4- Como promover a felicidade humana?
a) considerar que por meio de certas práticas pode-se obter a felicidade em uma vida futura
b) considerar a satisfação moderada dos desejos como um meio de se obter prazer, dando preferência a desejos naturais e evitando-se desejos supérfluos ou de realização difícil.
c) considerar a satisfação irrestrita de todos os desejos, utilizando-se de todos os meios necessários para tal fim.

A maioria das religiões responde a essas quatro perguntas, cada uma a sua maneira. Ideologias e sistemas de pensamento que questionam as religiões também o fazem (como o ateísmo, por exemplo).

E o Epicurismo? Como se posiciona diante de tal assunto? Eis o que exponho adiante:

1- Como lidar com a morte?
a) Considerando que ela representa o fim da consciência humana, portanto o fim da dor e do sofrimento, e não precisa ser temida por si (o que se deve temer são os processos dolorosos que levam à morte)
Essa visão representa o remédio "não temer a morte". Epicuro considera que a consciência humana (alma) é formada por "átomos" e que seu funcionamento está intimamente ligado ao funcionamento do corpo. Diante da morte, tanto o corpo quanto a alma entram em decomposição e o indivíduo deixa de existir, esgotando toda e qualquer possibilidade de sofrimento.

2- Como lidar com o sobrenatural e o divino?
b) Considerando que tais fenômenos existem, mas que eles não afetam diretamente nossa existência, sendo assim irrelevantes, e sentimentos negativos relativos a isso são infundados.
Essa visão representa o remédio "não temer os deuses". Epicuro acreditava que a existência dos deuses e do sobrenatural são fatos, pois essa são crenças demasiado arraigadas entre os homens, e portanto devem ter fundamentos na realidade. Porém, ele acreditava que os deuses, por serem seres felizes e bem aventurados, não teriam interesse na existência humana, que tem muitos sofrimentos e perturbações. Ademais, os deuses são feitos de uma substância diferente do homem, e podem assim serem incapazes fisicamente de ter uma interação significativa com os seres humanos, ao ponto de afetarem ou governarem seus destinos.

3- Como lidar com o sofrimento?
a) Considerar que o sofrimento é uma condição temporária e autolimitada e se limita a essa vida
Essa visão representa o remédio "o que é mau é fácil de suportar". Entende-se por mau tudo que provoque dor ao homem ou reduza sua vitalidade. Epicuro usava um argumento fisiológico para o seu método de lidar com o sofrimento: se não está pautado em uma necessidade (integridade física, alimento, abrigo, segurança, companhia), então o sofrimento é infundado e pode ser ignorado (ex.: ficar triste por não conseguir comprar uma roupa de grife, mesmo tendo várias roupas à disposição). Sofrimentos associados à necessidades devem ser combatidos, pois do contrário trarão ao indivíduo doença e morte. E a percepção do sofrimento muda à medida que somos a ele expostos. Sofrimentos intensos tendem a ser de curta duração, e sofrimentos prolongados tendem a ficar suportáveis com o tempo. A própria cessação de um sofrimento traz consigo prazer, o que é uma coisa boa, e inclusive há prazeres que só podem ser obtidos quando se suporta certos sofrimentos. Tendo isso em mente, é possível ficar tranquilo diante da dor e suportar o sofrimento com resignação.

4- Como promover a felicidade humana?
b) considerar a satisfação moderada dos desejos como um meio de se obter prazer, dando preferência a desejos naturais e evitando-se desejos supérfluos ou de realização difícil.
Essa visão representa o remédio "o que é bom é fácil de se alcançar". Entende-se por bom tudo que traga prazer ao homem ou aumente sua vitalidade. O argumento para lidar com o prazer tem um aspecto fisiológico (similar ao sofrimento) e um aspecto prático. O aspecto fisiológico diz que a simples satisfação das necessidades básicas do ser humano (integridade física, alimento, abrigo, segurança, companhia) já gera níveis importantes de prazer e são relativamente fáceis de se alcançar. Já desejos supérfluos (comidas caras, roupas caras, fama, vaidade, desejo de poder) não correspondem a nenhuma necessidade básica do ser humano, e perseguir tais desejos exige muito esforço, o que provoca a fadiga. Epicuro não aprova a busca irrestrita da satisfação dos desejos por motivos práticos, que são:
a) alguns desejos, quando satisfeitos, podem desencadear processos que promovem dores maiores que os prazeres obtidos (ex.: abuso de drogas levando à dependência e doenças)
b) a busca por satisfação de desejos encoraja a competição e a violação de leis e costumes, causando sofrimentos a outras pessoas e atraindo inimizades (o que impõe mais obstáculos à satisfação dos desejos)
c) alguns desejos, para serem satisfeitos, exigem que a pessoa renuncie a coisas que são necessárias ou que em algum momento exigiram muito esforço para serem alcançadas, o que pode colocar o indivíduo em uma situação pior que a situação atual.
Minimizando nossos desejos ao essencial, temos mais chances de conseguir o que queremos e menos risco de atrair inimizades, livrando-se assim da ansiedade e alcançando um estado de tranquilidade (ou ataraxia).

Partindo-se do princípio de que os pressupostos epicuristas estão corretos, creio que ele pode cumprir de modo satisfatório o que se propõe à fazer (promover a felicidade e minimizar o sofrimento). A discussão, porém, fica em aberto. Aqueles que não concordam com o Epicurismo, parcial ou totalmente, ou são adeptos de outras religiões e sistemas de pensamento ainda podem se utilizar desse método funcionalista para analisar outras crenças e chegar às próprias conclusões.

Até breve.