Religiões existem desde o início da existência do ser humano da Terra. Elas surgiram nos mais diversos contextos sociais, ambientais e históricos possíveis. E elas assumem as mais diversas formas, no que se refere às crenças adotadas, à ritualística e o modo como determinam os costumes e comportamentos de seus fiéis. Diante disso, apresentarei uma visão funcionalista dos sistemas de crença existentes (inclusive sistemas como o ateísmo e o epicurismo).
Um sistema de crença que vise dar um propósito à existência humana, para se mostrar útil, deve responder as seguintes questões:
1- Como lidar com a morte?
2- Como lidar com o sobrenatural e o divino?
3- Como lidar com o sofrimento?
4- Como promover a felicidade humana?
Essas perguntas que fiz irão remeter aos quatro remédios de Epicuro. Em breve falaremos nisso. Mas essas quatro perguntas são muito úteis para orientar o estudo de uma religião ou sistema de crenças.
Diante disso, vamos ver que opções de resposta cada pergunta pode receber (essas são as principais opções de resposta, pode-se considerar outras respostas como possíveis):
1- Como lidar com a morte?
a) Considerando que ela representa o fim da consciência humana, portanto o fim da dor e do sofrimento, e não precisa ser temida por si (o que se deve temer são os processos dolorosos que levam à morte)
b) Considerando que é impossível se obter respostas definitivas sobre o assunto (evitando então o comportamento especulativo)
c) Considerando que ela não é definitiva e que uma parte da consciência (a alma) sobrevive após a morte (
se esse for o caso, novas perguntas surgirão)
c1) que métodos podemos nos utilizar para se obter respostas sobre a existência pós-morte?
c2) é possível que após a morte a alma experimente estados de bem-aventurança? Se for esse o
caso, o que fazer para se obter, prolongar ou maximizar esse estado?
c3)é possível que a alma seja submetida à sofrimentos após a morte? Se for esse o caso, o que fazer
para evitar, abreviar ou minimizar esses sofrimentos?
c4) é possível que a alma passe por novas existências como ser vivente, seja humano
(reencarnação) ou de outras espécies (metempsicose)? Se for esse o caso, como controlar o
processo de reencarnação a nosso favor?
d) considerar que é possível evitá-la ou revertê-la por meio do desenvolvimento tecnológico e da Ciência, e fundamentar suas esperanças nessa possibilidade
2- Como lidar com o sobrenatural e o divino?
a) Considerando que tais fatos não existem, portanto qualquer sentimento negativo relativo a isso é infundado.
b) Considerando que tais fenômenos existem, mas que eles não afetam diretamente nossa existência, sendo assim irrelevantes, e sentimentos negativos relativos a isso são infundados.
c) Considerando que tais fenômenos existem e podem afetar diretamente nossa existência (
se esse for o caso, novas perguntas surgirão)
c1) que métodos podemos nos utilizar para se obter respostas sobre o divino e o sobrenatural?
c2) se tal instância pode ter efeitos positivos, como obter ou maximizar esses efeitos?
c3) se tal instância pode ter efeitos negativos, como evitar ou minimizar esses efeitos?
3- Como lidar com o sofrimento?
a) Considerar que o sofrimento é uma condição temporária e autolimitada e se limita a essa vida
b) Considerar que o sofrimento será recompensado em um momento posterior (como uma vida futura)
c) considerar que por meio de certas práticas é possível evitar a ocorrência de sofrimentos nessa vida ou em uma vida futura
d) ver o sofrimento como algo ilusório, invalidar sua existência e significado.
e) Utilizar válvulas de escape e mecanismos de fuga para poder ignorar o sofrimento
4- Como promover a felicidade humana?
a) considerar que por meio de certas práticas pode-se obter a felicidade em uma vida futura
b) considerar a satisfação moderada dos desejos como um meio de se obter prazer, dando preferência a desejos naturais e evitando-se desejos supérfluos ou de realização difícil.
c) considerar a satisfação irrestrita de todos os desejos, utilizando-se de todos os meios necessários para tal fim.
A maioria das religiões responde a essas quatro perguntas, cada uma a sua maneira. Ideologias e sistemas de pensamento que questionam as religiões também o fazem (como o ateísmo, por exemplo).
E o Epicurismo? Como se posiciona diante de tal assunto? Eis o que exponho adiante:
1- Como lidar com a morte?
a) Considerando que ela representa o fim da consciência humana, portanto o fim da dor e do sofrimento, e não precisa ser temida por si (o que se deve temer são os processos dolorosos que levam à morte)
Essa visão representa o remédio "não temer a morte". Epicuro considera que a consciência humana (alma) é formada por "átomos" e que seu funcionamento está intimamente ligado ao funcionamento do corpo. Diante da morte, tanto o corpo quanto a alma entram em decomposição e o indivíduo deixa de existir, esgotando toda e qualquer possibilidade de sofrimento.
2- Como lidar com o sobrenatural e o divino?
b) Considerando que tais fenômenos existem, mas que eles não afetam diretamente nossa existência, sendo assim irrelevantes, e sentimentos negativos relativos a isso são infundados.
Essa visão representa o remédio "não temer os deuses". Epicuro acreditava que a existência dos deuses e do sobrenatural são fatos, pois essa são crenças demasiado arraigadas entre os homens, e portanto devem ter fundamentos na realidade. Porém, ele acreditava que os deuses, por serem seres felizes e bem aventurados, não teriam interesse na existência humana, que tem muitos sofrimentos e perturbações. Ademais, os deuses são feitos de uma substância diferente do homem, e podem assim serem incapazes fisicamente de ter uma interação significativa com os seres humanos, ao ponto de afetarem ou governarem seus destinos.
3- Como lidar com o sofrimento?
a) Considerar que o sofrimento é uma condição temporária e autolimitada e se limita a essa vida
Essa visão representa o remédio "o que é mau é fácil de suportar". Entende-se por mau tudo que provoque dor ao homem ou reduza sua vitalidade. Epicuro usava um argumento fisiológico para o seu método de lidar com o sofrimento: se não está pautado em uma necessidade (integridade física, alimento, abrigo, segurança, companhia), então o sofrimento é infundado e pode ser ignorado (ex.: ficar triste por não conseguir comprar uma roupa de grife, mesmo tendo várias roupas à disposição). Sofrimentos associados à necessidades devem ser combatidos, pois do contrário trarão ao indivíduo doença e morte. E a percepção do sofrimento muda à medida que somos a ele expostos. Sofrimentos intensos tendem a ser de curta duração, e sofrimentos prolongados tendem a ficar suportáveis com o tempo. A própria cessação de um sofrimento traz consigo prazer, o que é uma coisa boa, e inclusive há prazeres que só podem ser obtidos quando se suporta certos sofrimentos. Tendo isso em mente, é possível ficar tranquilo diante da dor e suportar o sofrimento com resignação.
4- Como promover a felicidade humana?
b) considerar a satisfação moderada dos desejos como um meio de se obter prazer, dando preferência a desejos naturais e evitando-se desejos supérfluos ou de realização difícil.
Essa visão representa o remédio "o que é bom é fácil de se alcançar". Entende-se por bom tudo que traga prazer ao homem ou aumente sua vitalidade. O argumento para lidar com o prazer tem um aspecto fisiológico (similar ao sofrimento) e um aspecto prático. O aspecto fisiológico diz que a simples satisfação das necessidades básicas do ser humano (integridade física, alimento, abrigo, segurança, companhia) já gera níveis importantes de prazer e são relativamente fáceis de se alcançar. Já desejos supérfluos (comidas caras, roupas caras, fama, vaidade, desejo de poder) não correspondem a nenhuma necessidade básica do ser humano, e perseguir tais desejos exige muito esforço, o que provoca a fadiga. Epicuro não aprova a busca irrestrita da satisfação dos desejos por motivos práticos, que são:
a) alguns desejos, quando satisfeitos, podem desencadear processos que promovem dores maiores que os prazeres obtidos (ex.: abuso de drogas levando à dependência e doenças)
b) a busca por satisfação de desejos encoraja a competição e a violação de leis e costumes, causando sofrimentos a outras pessoas e atraindo inimizades (o que impõe mais obstáculos à satisfação dos desejos)
c) alguns desejos, para serem satisfeitos, exigem que a pessoa renuncie a coisas que são necessárias ou que em algum momento exigiram muito esforço para serem alcançadas, o que pode colocar o indivíduo em uma situação pior que a situação atual.
Minimizando nossos desejos ao essencial, temos mais chances de conseguir o que queremos e menos risco de atrair inimizades, livrando-se assim da ansiedade e alcançando um estado de tranquilidade (ou
ataraxia).
Partindo-se do princípio de que os pressupostos epicuristas estão corretos, creio que ele pode cumprir de modo satisfatório o que se propõe à fazer (promover a felicidade e minimizar o sofrimento). A discussão, porém, fica em aberto. Aqueles que não concordam com o Epicurismo, parcial ou totalmente, ou são adeptos de outras religiões e sistemas de pensamento ainda podem se utilizar desse método funcionalista para analisar outras crenças e chegar às próprias conclusões.
Até breve.